Luana Schrader
Tereza recordava da época em que tinha o sonho de conhecer a praia, algo tão distante de sua realidade. Até o dia que Adoaldo, chegou em casa com um sorriso largo, alguns cruzeiros a mais e uma carta misteriosa em mãos.
— Tete, arruma a bagagem pra gente e as crianças, vamos viajar.
— Como assim, Adoaldo? Onde iremos? Como pagaremos? Mal temos dinheiro pra pagar o pão e o leite das meninas.
Aproximando-se, como se tivesse sido iluminado por uma força invisível que transformara o impossível em realidade, o homem pegou em suas mãos e depositou um beijo suave no dorso pálido rendado por veias roxas e azuladas, a fazendo sorrir.
— A gente vai conhecer o mar, mulher.
Tereza começou a juntar seus pertences e a colocar dentro de malas. Pensou consigo: Irei conhecer a praia, do que mais precisaria? Sempre imaginou esse momento, mas as reportagens do jornal, recortadas e guardadas dentro de uma mala escondida embaixo da cama, eram o mais próximo que imaginava poder chegar do Atlântico.
Os dias se passaram e no mês seguinte ainda não havia conhecido o mar. Tereza e suas filhas, Estela e Susana, passavam os dias dentro de casa, um apartamento simples no Paciência, com paredes amarelas e algumas rachaduras no teto. Adoaldo conseguiu emprego como vendedor de livros em uma editora promissora de Guanabara, e com um singelo auxílio financeiro decidiram deixar a vida no sul do país para perseguirem o sonho carioca em busca de uma vida mais digna para a família tão sofrida.
Após semanas, Tereza enfim compreendeu que conhecer a praia era apenas uma desculpa para a convencer de que a melhor opção seria largar o que conheciam para então encarar uma aventura a beira-mar. No entanto, a bendita promessa nunca havia sido cumprida.
— Estela, Susana. Vamos conhecer a princesinha do mar.
— Quem, mamãe?
Encolhida no sofá, Susana, no auge dos seus quatro anos, chupava os dedos e com os olhos arregalados encarava a mãe.
— Copacabana. A praia, Susana.
— Por quê?
— Ora, porque estamos morando em Guanabara há um mês e o abençoado do teu pai nunca nos levou pra pisar na areia, nadar no tal do oceano Atlântico e comer biscoitos de polvilho enquanto assistimos uma partida de peteca.
— Por quê?
— E eu lá vou saber? Nem tudo tem uma explicação.
— Por quê?
Atingindo o ápice do estresse, Tereza, exausta dos questionamentos da filha, do barulho de buzinas do lado de fora e do choro de Estela, sentiu um rosnado gutural vibrar em seu peito e puxou a criança pelos bracinhos, na tentativa de fazê-la parar de questionar.
— Porque o teu pai trabalha a porcaria do dia inteiro, vendendo livros em Copacabana e o meu sonho sempre foi conhecer o mar que ele vê todo o santo dia. E eu irei, nem que seja a última coisa que eu faça nessa vida.
Estela chorou ainda mais, e enquanto a mãe tentava a acalmar, olhou de soslaio para Susana apoiada no braço do sofá, a encarando ressabiada enquanto mordia os lábios.
— Me desculpe, meu amor. A mamãe tá um pouco cansada e a gente ainda tem uma longa jornada até enfim chegarmos no mar.
— Papai vai nos encontrá?
— Sei lá, quem sabe no mar.
Dando de ombros, a mulher saiu do apartamento com uma bebê no colo, duas sacolas de palha em uma mão e outra criança segurando na barra de seu vestido. Foram assim, as três prontas para conhecer o mar.
Chegando lá, Susana dançou no meio do famoso calçadão adornado pela passadeira portuguesa, trabalhada com pedras pretas e brancas em desenhos alusivos às ondas do mar. Tereza sorriu ao perceber que enfim estava no cenário que protagonizou cenas de seus sonhos mais secretos. A orla era ladeada por edifícios imponentes e uma vista deslumbrante do oceano que se mesclava ao céu azul e seguia pelo horizonte sem fim. Era estupendo, muito melhor do que ousara imaginar.
Sentaram-se na areia e enterraram os pés nos grãos quentes, fizeram frágeis castelos, gargalharam até a barriga doer e na ausência de uma câmera fotográfica, memorizaram cada pedacinho da tarde que parecia ser a mais feliz de suas vidas. Há alguns dias, já tendo em mente o passeio até a praia, Tereza pegou um troco sem que seu marido percebesse e com algumas moedas na palma da mão, chamou o vendedor. A mãe, apesar de sentir-se exausta após o percurso de ônibus até a praia, sorriu ao comprar um chá mate com biscoitos de polvilho para Susana, que com as bochechas coradas, os cantos da boca levemente levantados e os olhos brilhando como estrelas em noite clara, observava o ambulante. Após muita insistência da primogênita, tomou um gole do chá, experimentando também o biscoito. A combinação do sabor amargo da bebida com a crocância do polvilho assado se espalhou pelas suas papilas gustativas em pequenas ondas de prazer, a fazendo sorrir.
— Tem certeza que naum quer, mamãe?
— Sim, Susana. Eu não tô com fome. Pode comer.
Por sorte, Estela dormia enquanto a barriga de Tereza roncava, já Susana estava distraída e encantada demais para perceber o que o silêncio gritava. Apesar da fome, os lábios da mulher se curvaram em um sorriso gentil ao ver a filha mais velha cantarolar alguma canção desconhecida enquanto lambia os farelos de polvilho dos dedinhos magros, e a caçula ressonando tranquilamente ao seu lado.
No pôr-do-sol, com o Pão de Açúcar sendo banhado pelos raios solares e a luz alaranjada refletindo no mar, uma comoção tomou conta das areias enquanto ambulâncias e policiais se aproximavam. Pegando suas meninas no colo e se avizinhando da beira-mar, Tereza descobriu que naquele instante tudo iria mudar.
Deu um passo vacilante e tentou se desvencilhar dos socorristas. Ao se aproximar do corpo estendido na areia, se ajoelhou e viu a maldita carta misteriosa de semanas atrás repousando em cima da maleta marrom, com uma despedida redigida em letra cursiva e alguns cruzeiros a mais. Com esparsas lágrimas deslizando pelas suas bochechas, se debruçou sobre o corpo já sem vida.
Adoaldo nunca quis a levar para ver o mar, ele apenas quis fugir para sempre da vida ordinária que levava e preferiu uma morte poética do que encarar olhares acusatórios em cima de um homem que não tinha como sustentar a sua família. Mesmo que a esposa se oferecesse para faxinar casas ou cuidar de crianças, o orgulho do marido jamais permitiria tal proeza.
Se aproximando do finado, lhe deu um beijo suave nos lábios já sem cor e uma última lágrima escorreu pelo rosto da jovem mulher. Naquele momento, desejou congelar o tempo ao observar o trajeto da pequena gotícula cair no rosto pálido do homem, trilhando um caminho até o pescoço molhado. Ali ela sentiu a esperança de poder se mesclar ao salgado do mar e o acompanhar nessa nova aventura, no entanto, tinha consciência de que duas vidas ainda dependiam da sua.
Naquela tarde, Tereza entendeu que alguns sonhos podem nos afogar.