Luana Schrader
Há uma expressão francesa que fala sobre destinos influenciados pelo poder de uma explosão. “Coup de Foudre” que pode ser traduzida literalmente como “golpe de raio” ou metaforicamente como “golpe de sorte”.
E foi assim, com um estrondo, que essa história começou.
Naquela noite de lua cheia, a brisa fresca soprava pelas ruas atribuladas da capital, a selva de pedras estava circunvalada por árvores com flores avermelhadas exalando o característico aroma adocicado. A jacarandá na esquina sussurrava que em instantes tudo iria mudar, mas Luna não sabia, apenas havia parado para fotografar e ter seu caminho atrasado para o que estava prestes a encontrar. Ela adorava flanar por aquelas ruas sob a luz da lua e das estrelas, e por um instante agradeceu mentalmente por não ter cancelado os planos de viajar. Mesmo que tivesse chegado com atraso de alguns dias e na companhia da família, ainda assim era uma viagem rápida a trabalho, envolvendo livros, encontros e autógrafos. Tudo o que precisava para tentar se reconstruir, afinal, escrevia sobre amores arrebatadores, acalentava corações com a esperança de que amar e ser amado era um direito de todos, mas na vida real não era bem assim. Ao menos, não mais.
Após passar meses recolhendo os próprios cacos, reconstruindo-se em silêncio depois de um relacionamento que a havia estilhaçado, decidiu que o amor ficaria de fora de sua vida. Por um tempo seria a sua única prioridade e o romance, exclusivo das páginas de seus livros. No entanto, não esperava que o destino tivesse outros planos e naquela noite, uma explosão seria capaz de mudar caminhos e fados.
Segundos podem revolucionar destinos traçados ou conectar histórias entrelaçadas, até as que indo contra todas as probabilidades tinham seus caminhos diariamente desviados, como se um fio se esticasse até Eros proferir sentença e lançar sua flecha fulminante. Forças da natureza não pedem licença e o estrondo de um raio pode definir encontros predestinados.
O atraso de Luna não era mero acaso, o hotel desconhecido selecionado por obra do destino tinha segredos a serem revelados sob as sombras do lobby. Ela sentiu um arrepio e o frio na barriga lhe avisava que algo estava prestes a acontecer. Na escuridão, subia os degraus depressa, o corrimão frio deslizando sob seus dedos trêmulos. O cheiro de fumaça ainda impregnado no ar, misturado ao gosto metálico do medo. Cada estalo distante fazia o seu coração disparar mais um pouco. Não havia fogo, ela sabia, mas a escuridão nas escadas fazia sua mente sussurrar memórias que não queria reviver.
A placa do seu andar surgiu à frente, mergulhado na penumbra, como tudo ao seu redor. Hesitou por um instante, respirou fundo antes de seguir e abriu a porta. No corredor, o silêncio parecia mais denso, mas uma fresta de luz pálida e dourada que escapava da porta entreaberta de um dos quartos, tingia o chão escuro com um brilho aconchegante.
E ali estava ele.
Um rosto recém descoberto, um sorriso suave, hesitante, mas acolhedor, como um convite silencioso para se aproximar. Ela sorriu, sentindo certa familiaridade e depois de uma conversa desajeitada na porta do quarto, não imaginou que aquele havia sido um instante que ficaria eternizado em suas memórias.
“Quem é esse homem?”, pensou ao se apoiar na porta fechada. A única coisa que sabia sobre ele era que estava hospedado com os pais, assim como ela estava com a família. Nada mais. Quem era, onde morava, o que fazia, eram detalhes ocultos que acreditou jamais descobrir, afinal: Qual seria a probabilidade?
Trocaram algumas palavras, comentaram sobre o ocorrido e minutos depois já estava deitada em sua cama. Todos estavam bem, havia sido a explosão de um dos geradores da quadra. A escuridão persistia e o seu sono não vinha. Fechava os olhos e a covinha vinha à sua mente teimosa, a voz rouca e melódica preenchia seus pensamentos e não podia negar que aquele desconhecido havia feito seu coração errar uma batida. Escondeu o rosto no travesseiro e tentou abafar qualquer sentimento teimoso que ousasse se infiltrar em sua mente. Ela não tinha tempo para aquilo, não mais. No entanto, por mais que tentasse ignorar, o pensamento se infiltrava sorrateiramente, como uma sombra sempre à espreita. Estavam separados por uma frágil parede e isso fazia seu estômago se movimentar de uma forma que ela não gostava. Depois de muito revirar na cama, desistiu de dormir e ao invés de insistir no sono, sentou-se e escreveu até o dia amanhecer.
Luna costumava priorizar o seu sono e evitava cafés da manhã de hotéis, mas naquela manhã, como não havia dormido, acompanhou sua mãe. No fundo, torcia para que o encontrasse mais uma vez, mas já estava começando a achar ridícula a direção que seus pensamentos estavam tomando. Provavelmente nunca mais o veria e estava tudo bem com isso, quem sabe houvesse sido apenas um encontro para inspirar as suas histórias. Afinal, tinha um livro, que estava com o prazo atrasado, para entregar para a editora. Apenas uma inspiração aleatória era o que ela queria, não é? Estava cansada de amores passageiros, então o melhor seria realmente nunca mais vislumbrar aquela covinha.
Soltou a respiração ao entrar na sala do café e não o encontrar, de certa forma aliviada por manter tudo aquilo apenas no plano platônico.
No entanto, meus caros, como em uma peça de teatro, essa história é dividida em atos, o destino escreve certo por linhas tortas e mais uma vez relembrou Luna de que quem joga os dados é ele. Não ela. Nem o belo desconhecido.
Terceiro ato, em ritmo de samba enredo, Luna fechou o livro que estava lendo e antes de sair encontrou o senhor com sorriso doce que havia conhecido na noite anterior. O pai do desconhecido. Se aquilo era um sinal, ela não percebeu, mas no instante em que o homem lhe contou que moravam na mesma cidade, sentiu seu coração errar duas batidas. Em minutos ficou sabendo mais sobre aquela família e sorriu ao perceber que já estava mergulhada nas tais coincidências que tanto repudiava. Não acreditava no acaso, mas não duvidava do poder do destino, afinal, já havia tido muitas provas de que ele não brincava em serviço.
E mais uma vez, lá estava ele, parado com as mãos nos bolsos e exibindo a covinha solitária. Ela balançou a cabeça e retribuiu o sorriso. Enquanto todos interagiam, evitava seu olhar que cintilava com faíscas de algo inexplorado. Ele se aproximou e em meio a trocas de informações – ele era advogado que trabalhava próximo ao café em que semanalmente ela frequentava, ela contou que era escritora e que estava morando há pouco tempo na cidade em que ele havia nascido e agora residia. E mesmo assim, eles nunca haviam se encontrado, naquela cidade de interior em que todos se conheciam –, de forma arrebatadora sentiu uma energia crepitante percorrer o seu corpo. Obviamente, tentou ignorar e quando ele se aproximou mais um pouco, quis abafar o sobressalto que seu coração deu. Afinal, Luna não tinha tempo para os sentimentos, como bem sabemos que repetia incansavelmente para ela mesma, como se tentasse se convencer de uma besteira dessas. Enquanto isso, o destino gargalhava e jogava os dados, como quem se diverte ao brincar com as linhas da vida.
— Qual o teu nome?
¬— Luna. E o teu?
— Lucien.
Sorriram, trocaram mais algumas palavras e se despediram. Ela foi embora, dessa vez subiu as escadas com um sorriso no rosto e um movimento involuntário e irritante no âmago de seu estômago. Se ele havia a seguido com o olhar? Talvez nunca viesse a descobrir, mas naquele instante soube que não importava o quanto tentasse se convencer do contrário, não importava quantos muros erguesse ao redor do coração, algo dentro dela já havia sido tocado. Algo que não poderia ser desfeito.
Fim do terceiro ato.
Luna sorriu ao pensar em um epílogo para aquela história que viraria um conto, porém desistiu de tentar brincar de adivinhar o futuro e deletou aquelas letrinhas minúsculas que já formavam meia página do bloco de notas.
Algumas semanas depois, já em casa, o destino seguia jogando os dados e Lucien apareceu em sua timeline. Ela hesitou, não acreditou que seria simples o encontrar, mas ali estava o mesmo sorriso suave e a covinha solitária, na sua frente através de uma tela. Relutou por alguns dias, até que por culpa de um sonho em que Lucien aparecia abanando para ela, acordou e o adicionou. Não era possível que o destino estivesse sendo tão pé no saco assim, de graça. Para a sua surpresa, em seguida o celular apitou e… era ele.
Lucien. Luc. Lucky.
Luna deu risada da situação e se permitiu seguir o fluxo, afinal, era isso que as suas personagens faziam. Quem sabe tenha sido um golpe de sorte orquestrado pelo destino ou apenas um encontro predestinado com motivos ainda não desvendados, mas no fundo sabia que alguma coisa era.
“Não poderíamos ignorar tantas sincronicidades”, ele disse.
“Inverossímil demais para escrever sobre isso”, ela pensou. Mas enfim entendeu que algumas histórias não nascem para serem escritas, e sim vividas.
O fio do destino seguia emaranhado, mas as forças da natureza os empurravam na mesma direção. Os próximos capítulos seriam escritos pelo destino, no entanto, sabiam que aquele último sorriso não era o ponto final. Resta saber se um raio cai duas vezes no mesmo lugar e se essa seria uma história aos moldes de Chekhov ou uma comédia romântica que assistimos em uma tarde chuvosa de domingo.
Que rufem os tambores e o destino faça as suas apostas, pois quando Eros decide se juntar ao cosmos, nunca sabemos qual será o desfecho de um conto ou uma canção.
*Publicado na Revista Autorretratos em 10 de Fevereiro de 2025*