Luana Schrader
É uma verdade universal que todo o filme de ficção científica começa com um cientista sendo ignorado.
Era 28 de maio de 2004, e por mais inverossímil que fosse a história, o filme “O dia depois de amanhã” estreava com recorde de vendas no cinema mundial.
Ana, no auge da adolescência, esperava assistir apenas mais uma ficção com suspense, enquanto saboreava um pacote grande de pipoca com manteiga derretida. No entanto, quando as luzes se apagaram e ocupou o seu lugar no fundo da sala, mal sabia que aquele filme era muito mais do que uma ficção inocente.
Com os olhos estaqueados e o coração acelerado, a jovem mergulhou em um universo ficcional, nada verossímil, mas que viria a mudar a sua vida.
Não era apenas mais um filme e por duas horas o pacote de pipocas ficou intocado, enquanto um novo sentimento despertara no coração de Ana.
“É apenas ficção, isso nunca irá acontecer”, eles diziam e riam. Uma piada, foi assim que muitos interpretaram o filme.
Porém, a jovem não achou nenhuma graça em ver fenômenos climáticos destruírem a natureza, pontos turísticos, vidas e sonhos. De alguma forma ela sabia que as cenas projetadas na tela, poderiam ser reais. Um dia. E por um instante, desejou fazer algo para mudar a profecia escondida nas entrelinhas.
Nos anos 2000 muito se falava sobre o fim do mundo, de fato, na história da humanidade houveram diversas datas em que o caos e destruição era esperado. Desde os anos 66 d.C o fim do mundo era estimado, através de previsões de astrólogos, religiosos, profetas e cientistas, que calculavam datas para o tão fadado juízo final.
Nostradamus afirmou que o “Rei do Terror” viria do céu em “1999 e sete meses”, e mais uma vez, em julho de 1999 o fim do mundo era aguardado.
A virada do ano 2000 foi outra circunstância em que as famílias se reuniram não apenas para celebrar um novo ano, como também para “assistir” a colisão da Terra com um asteróide que poderia destruir a humanidade, uma supernova ou até mesmo uma invasão alienígena, tal qual nos filmes de MIB dos anos 90.
O tempo passou e agora, vinte anos depois, no mês de maio — assim como a data de lançamento do filme que hoje poderia ser visto como uma profecia –, as cenas inverossímeis da ficção tornaram-se realidade.
Ana virou cientista, consagrou-se como mais uma das estudiosas que alertam as autoridades e a população, porém o seu grito nunca foi ouvido e por anos seus estudos foram ignorados e silenciados.
Eles, os negacionistas, alegam: “É apenas um desastre climático”, “O tempo anda meio louco”, “É fake News”.
Os outros, o povo, chora lágrimas salgadas que encontram as águas enlameadas e contaminadas: “Eu perdi a minha casa”, “A minha filha morreu afogada no centro de Porto Alegre”, “Uma estrada se partiu ao meio nas ruas de Gramado”.
São essas as palavras, os relatos e lamúrias abafadas pelo som de choros dolorosos que soam como o chiar metálico do cobre arranhado com força, ressoando de maneira aguda e angustiante. Tem sangue em meio a lama, pavor estampado no olhar dos resgatados e um cemitério escondido por baixo da água.
A estrutura rosa virou marrom, a Travessa se transformou em mar, o céu chorou e o povo também. Todos choraram e temeram que as lágrimas, ironicamente, aumentassem o nível dos rios.
Ana, após um dia de voluntariado, se acomodou no conforto do seu sofá, e ao som de Gilberto Gil abraçou seu irmão, agradecendo por ainda ter um lar. Ela e sua família estavam seguros, tinham água e luz, comida e amor, mas a real é que eles não estavam bem. Ninguém estava, e iriam demorar para ficar.
A água continuava subindo, o frio violentamente surgia, e ela se sentia presa em um cenário apocalíptico. Era como uma distopia onde os personagens eram pessoas que amava e não tinham mais um lar. Tinha também aquele senhor do abrigo que lhe entregou um bilhete de agradecimento, os cachorros e gatos traumatizados e no aguardo de um tutor aparecer, as crianças agora órfãs, e todo o povo unido para abraçar um Estado. Era o povo pelo povo. Era uma comunidade unida tentando se reerguer e quem sabe provar que a humanidade, talvez, ainda não tivesse falhado completamente.
Nessa trama, os personagens eram feitos de carne e osso, e não de papel ou projeção cinematográfica, e isso a fez se sentir impotente por não poder salvar todos.
— Feliz aniversário, Aninha. — Sua mãe lhe entregara um bolo, depositando um beijo terno em sua testa.
Ana sorriu, mas seus olhos seguravam as lágrimas. A alma sangrava e o coração, apesar de grato por estar “bem”, estava despedaçado. Ironia do destino é comemorar a vida enquanto muitos choram por um desastre anunciado.
As semanas passavam e Ana ainda sentia-se vivendo a reprise do mesmo filme que há vinte anos viu nas telas. A diferença é que como ela já sentia, não era apenas um filme. Agora, em pleno 2024, a vida real havia se transformado em ficção. Ou a ficção se entrelaçara a vida real? Vida essa, que é nua e crua, que rasga a carne e expõe as entranhas.
No fim, não era apenas mais uma ficção. O dia depois de amanhã havia chegado, porém nem Ana e nem ninguém sabia como seriam — e quantos — “amanhãs” ainda existiriam. O juízo final não era apenas um dia, a temida profecia andava de mãos dadas com o dia a dia.